Uberização, pejotização, fins de direitos, superexploração: a lógica predatória do capitalismo do século XXI
O capitalismo se estabeleceu ainda no século XVI enquanto um fenômeno histórico baseado em duas condições centrais: o assalariamento como forma de contratação dos trabalhadores e, a consequente condição de exploração destes trabalhadores numa jornada de trabalho que possibilitasse ao empregador (empresa capitalista) obter uma massa de lucro com base nas atividades que aquele assalariado executasse durante a jornada de trabalho.
Durante o século XIX às jornadas de trabalho alcançavam em alguns países às 18 horas diárias; em alguns países, como o Brasil e EUA, a manutenção da escravidão até quase final do século impunha jornadas eternas e a condição de exploração máxima aos trabalhadores.
O capitalismo do século XX foi sacudido pela organização dos trabalhadores e pela luta social pela garantia de mínimas condições de vida. Assim, ainda no início do século XX, os movimentos de trabalhadores avançaram para uma paulatina, por mais que parcial regulação das relações de trabalho, tanto em termos de jornadas, como também salariais. Ao nível internacional a OIT (Organização Internacional do Trabalho) que surge em 1919, foi uma das primeiras organizações internacionais a serem fundadas dentro da perspectiva de uma ordem que levaria em conta um padrão de capitalismo mais regulado pelos interesses da sociedade como um todo.
Durante a segunda metade do século XX um conjunto de regramentos sociais estabelecido em países do chamado capitalismo central. O chamado “Estado de Bem Estar Social”, ao lado da presença de uma classe trabalhadora muito organizada em sindicatos e organismos políticos conseguiram frear, ou pelo menos, mitigar a lógica de ilimitada exploração própria do regime capitalista.
Nos últimos quarenta anos, o capitalismo baseado na chamada “acumulação flexível” se tornou o novo padrão, ou de outro modo, reverteu às condições históricas estabelecidas no Pós-guerra e se implantou como lógica de superexploração do trabalho nas mais diversas partes do planeta.
Três alterações foram centrais para o estabelecimento deste novo padrão: alterações tecnológicas; alterações nas regulações sociais e fragilização da organização de trabalhadores. Estas três alterações atuaram conjuntamente e simbioticamente. Incialmente as alterações tecnológicas, especialmente a chamada “reestruturação produtiva” e, conjuntamente, as novas tecnologias de comunicação e transmissão de dados, impuseram formas de trabalho e, principalmente, intensificaram o controle sobre o tempo de trabalho, avançando, inclusive, sobre o chamado “trabalho livre”, ou seja, àquele tempo de trabalho até então não alienado, ou não vendido, ao capital ou empresa capitalista. Por exemplo, as novas tecnologias permitem que o final de semana seja utilizado sob condições de exploração e execução de atividades laborais, utilizando o próprio espaço domésticos dos trabalhadores e trabalhadoras.
Porém, essas novas tecnologias, a exemplo do UBER possibilita com que o tempo de trabalho além de ser alienado em condições mais intensas, também os próprios meios de subsistência ou propriedades básicas dos trabalhadores passa a ser controlados e revertidos para exploração pelo capital ou empresa capitalista. No caso do UBER, o trabalhador além de disponibilizar seu tempo na atividade de “taxista” também disponibiliza sua propriedade ou posse material, o veículo, se torna um bem controlado pelo processo tecnológico empresarial.
As duas outras alterações também foram centrais e reforçam o mundo da precarização que temos no início do século XX. A quebra das regras básicas de regulação social passou a impor crescentes jornadas de trabalho ao nível mundial, com taxas de salários decrescentes.
No Brasil o antepenúltimo momento desta tragédia social se deu com a regulamentação da Lei Complementar 13.467/16, convencionada de Reforma Trabalhista. Os pontos que são mais graves e de repercussão ainda não totalmente visíveis no mercado de trabalho se relacionam a intensificação das condições de fragilidade e vulnerabilidade dos trabalhadores no mercado de trabalho. Vale pontuar na legislação o fortalecimento da figura do trabalho autônomo, intermitente, parcial, temporário e fortalecimento da terceirização.
No chamado contrato de trabalho intermitente, o empregado terá o prazo de vinte e quatro horas para responder ao chamado e o período de inatividade não será considerado como tempo de serviço à disposição do empregador. O trabalhador intermitente somente receberá pelas horas efetivamente ocupadas, o que concretamente estabelecerá salários abaixo do mínimo e formas de subemprego enquanto dinâmica legal.
Por sua vez o Contrato de Trabalho temporário, será de cento e oitenta dias, consecutivos ou não, prorrogáveis por mais noventa dias, consecutivos ou não, ou seja, será de até 270 dias, bem acima da rotatividade média no Brasil (que é de 6 meses). O resultante desta lógica nos leva ao uso do trabalho temporário enquanto forma definitiva, impondo a definitiva precarização do trabalhador.
Resultante desta reconfiguração predatória do mercado de trabalho brasileiro, temos, segundo a última PNAD-C (Pesquisa Nacional por Amostragem Domiciliar Contínua), divulgada pelo IBGE referente ao trimestre de março/2019, um total de mais de 32 milhões de brasileiros em idade de trabalhar, mas que ou não conseguem emprego, ou não trabalham tanto quanto gostariam ou, ainda, estão fora da força de trabalho (seja por que não têm como assumir um emprego, ou por que desistiram de procurar por emprego).
Por fim, mas tão deletério quanto os aspectos acima refere-se a fragilização dos sindicatos e a perda da capacidade dos trabalhadores de reagirem aos ataques que o Capital na sua sina de crescente exploração impõe. Assim nos últimos anos observamos a menor organização de trabalhadores e a diminuição do poder dos sindicatos.
Mesmo com tanta fragilização os trabalhadores estão construindo novos instrumentos de resistência, assim na Inglaterra surgiu a União dos Trabalhadores Independentes da Grã-Bretanha (IWGB), que marcou para esta quarta-feira (08/05) um boicote global a empresa UBER (operadora holding do UBER). Os motoristas planejam fazer logoff do aplicativo e protestar contra os abusos do UBER.
A IWGB está chamando o público para não cruzar a linha de “piquete digital” não usando o aplicativo para reservar serviços UBER nesta quarta-feira. Segundo o Sindicato Inglês “os investidores e fundadores da UBER ganham bilhões de dólares (…) baseada em um modelo de negócio insustentável, dependente da exploração de trabalhadores, evasão fiscal e arbitragem regulatória” (THE INDEPENDENT, Inglaterra: ind.pn/2WtvCAd).
É este modelo de capitalismo predatório que está no centro da atual configuração social brasileira.
José Raimundo Trindade é Professor da UFPA e Coordenador do Observatório Paraense do Mercado de Trabalho – OPAMET