A uberização das relações de trabalho
O modelo de trabalho é vendido como atraente e ideal, pois propaga a possibilidade de se tornar um empreendedor.
No dia 6 de julho, São Paulo testemunhou mais uma vítima da debilidade das novas relações de trabalho. O motorista de aplicativo da plataforma RAPPI, Thiago de Jesus Dias faleceu aos 33 anos, após acidente vascular cerebral, durante uma entrega, sem qualquer tipo de assistência, seja da empresa de aplicativo ou dos serviços públicos.
O motorista passou mal no local da entrega, a cliente chegou a entrar em contato com a central da RAPPI, que de maneira desumana se limitou a solicitar que a mesma desse baixa no pedido, para que eles conseguissem cancelar as próximas entregas do mesmo, evitando prejuízo aos clientes do aplicativo, afirmando nada poder fazer em relação ao estado de saúde do “motorista parceiro”.
Thiago foi levado ao hospital por uma amigo, em carro particular, cerca de duas horas depois, já que a SAMU não chegou ao local, e um motorista de “UBER”, chamado para conduzi-lo ao hospital, se recusou a permitir sua entrada no automóvel, pois o mesmo “sujaria o veículo”, já que havia urina em sua roupa. Ele não resistiu e faleceu cerca de doze horas após dar entrada no hospital.
Esta situação traz à tona a fragilidade e riscos decorrentes dos novos modelos de contrato de trabalho, oriundos de dispositivos tecnológicos, denominados de sharing economy – economia colaborativa ou cultura de compartilhamento.
Inicialmente propagados com o objetivo de incentivar a solidariedade, o consumo sustentável e compartilhamento de tecnologia, foram desvirtuados, e se transformaram em precarização das relações de trabalho.
Trata-se do fenômeno da Uberização das relações de trabalho, através da qual, há uma exploração da mão de obra, por parte de poucas e grandes empresas que concentram o mercado mundial dos aplicativos e plataformas digitais, que tem como principal característica, a ausência de qualquer tipo de responsabilidade ou obrigação em relação aos “parceiros cadastrados”, como são chamados os prestadores de serviços. Isto porque deixam claro que têm como objeto, a prestação de serviços de tecnologia, contratados pelos “parceiros”.
O modelo de trabalho é vendido como atraente e ideal, pois propaga a possibilidade de se tornar um empreendedor, autônomo, com flexibilidade de horário e retorno financeiro imediato. Esta ilusão fez o mercado crescer rapidamente, em detrimento as relações formais de emprego que estávamos acostumados, principalmente, no que se refere a identificação profissional.
Entretanto, a realidade é cruel e distinta, já que no Brasil, são repassados à plataforma entre 20% e 30% dos valores cobrados aos clientes, de modo que ao motorista não sobra muito, considerando os baixos valores praticados. Associado ao fato de que este tem que arcar com as despesas de celular, internet, combustível, reparos, desgastes do veículo, tributos, seguros além de assumir a responsabilidade por danos causados a terceiros.
A plataforma conta ainda com uma forma extremamente eficiente de controle de qualidade dos serviços prestados, e melhor, sem qualquer ônus para a empresa, já que os clientes são os responsáveis por avaliar a corrida e o motorista, assegurando perfeição e celeridade no atendimento. Assim, as “estrelas” são uma das maiores fontes de pressão psicológica e estresse dos motoristas, numa busca incessante pela empatia e satisfação do cliente. Afinal, duas avaliações negativas são suficientes ao descredenciamento, já que têm que manter uma média de 4,6 pontos, numa escala de 1 a 5 estrelas, para continuarem com a parceria. Todo este processo é conduzido sem qualquer tipo de desgaste para a empresa, e em total impotência do motorista, vez que tudo ocorre através do sistema operacional, sem qualquer tipo de ingerência, fiscalização ou assistência.
Nem Max Weber, poderia imaginar a construção de um protótipo de relação de trabalho, concebida pela vaidade e necessidade de empreender do indivíduo, alimentada por uma sociedade que não enxerga o quão parasita é este “sistema”.
As metas impostas e a busca incessante pelo dinheiro, em meio a uma crise econômica mundial, asseguram uma mão de obra que trabalha por mais de doze horas diárias, sem qualquer tipo de fiscalização do Estado, ou instituição para defender e regulamentar seus direitos, assim como a reduzir os riscos da atividade.
Este modelo permite que o mercado sugue as forças do trabalhador, sem qualquer tipo de estigma ou embaraço: trata-se da banalização da precarização das relações de trabalho.
O fantasiado trabalho autônomo, passa a se fazer presente em todo e qualquer momento, bastando ativar o aplicativo, dando lugar a uma atividade interligada a própria vida do indivíduo, que de maneira contraditória, cessa qualquer chance de liberdade, num verdadeiro círculo carcerário de busca constante pela subsistência.
Mas quando ocorre um fato como a morte do Tiago, abre-se um caminho para reflexão sobre a responsabilidade por aquela vida. Já que em se tratando de relações formais de trabalho, estaríamos diante de um caso típico de acidente ocorrido no exercício do labor, sob responsabilidade do empregador. Nesse momento fica claro que a relação de trabalho ou “parceria” instituída por este novo modelo, traz uma série de riscos, principalmente, quando o Estado não se mostra eficaz a garantir a saúde e segurança do trabalhador.
No Brasil, a flexibilidade do modelo, e a ausência de fiscalização, cedeu espaço para a subcontratação ou terceirização do UBER, em razão dos baixos valores praticados, o que torna ainda mais frágil os critérios de segurança, e agressiva a exploração da mão de obra. Como para se credenciar é necessário ter carro e linha de celular, há um comércio de credenciamento, burlando as regras da plataforma, o que impede o controle sobre os condutores.
A “uberização” do trabalho em Portugal
Na Europa, com a identificação de problemas decorrentes desses novos modelos de relação de trabalho, principalmente os associados a mudanças sociais e econômicas, os países passaram a impor alterações no modelo e restrições no procedimento, como é o caso Espanha, onde se tornou obrigatória a regulamentação e registros de licenças para a operação da plataforma UBER no país.
A necessidade de regulamentação dos novos modelos, trazidos sob a justificativa de flexibilização das relações de emprego se mostra latente, quando analisamos o caso do Tiago. Não estamos discutindo simplesmente a natureza da relação entre “parceiros” e plataforma, mas a necessidade de impor responsabilidades, para que seja assegurado o direito à saúde, segurança e vida do trabalhador.